domingo, 1 de julho de 2012

O Cabeludo e o Guerrilheiro - Marcus Veras*


Quando o Thomaz entrou no apartamento da Nascimento Silva onde eu me abrigava, a primeira coisa que me chamou a atenção foi a roupa. Aquele homem alto, branco, cabelos negros, estava impecavelmente vestido para quem era um guerrilheiro recém-saído da prisão. Calça clássica com vinco, camisa social impecável, o mais impressionante talvez fossem os sapatos, negros e reluzentes. Para destoar, o enorme saco de marinheiro onde ele empilhava e arrastava seus pertences.

As circunstâncias que levaram Thomas Antonio Meirelles, oriundo do PCB e dirigente da Aliança Libertadora Nacional àquele apartamento onde eu me encontrava em meados de 1973 não vêm ao caso. Fazem parte do inventário da derrota que a repressão impôs à luta armada e devem ser discutidas em cadernos de história, sociologia, entre a esquerda que sobrou e a que ainda resiste. Aqui, basta acrescentar que meus queridos amigos João Santana e Vera Maria, titulares do cafofo, me avisaram da chegada do hóspede, e foram passar alguns dias fora, mesmo porque João já havia puxado uma temporada em cana e ela, sua advogada, tirou-o da cadeia para dentro de seu coração. Então, o melhor mesmo era diminuir o índice de bandeira no apartamento.

Bem, ali estava eu, diante de um homem encurralado, pois com sua organização destroçada Thomaz procurava contato com outros sobreviventes. Mas nada indicava o desespero que certamente vivia: seu comportamento era calmo, tranqüilo, observador. E mais: bem humorado. Naquele tempo, meus interesses eram poucos: o violão, sobreviver com frilas, descolar algum para custear a artesanía de meus cigarros, nada de muito futuro, como se vê. Sob esse ponto de vista, eu e ele tínhamos pelo menos um ponto de contato – nada de muito futuro, já se veria.

Partilhamos o apartamento por cinco ou seis dias. Eu possuía alguns fragmentos da história dele; ele não tinha idéia de quem eu fosse. De posse de meus cadernos de música, eu estudava no quarto, ele lia na sala. Nossas conversas eram rápidas e objetivas, onde encontrar o sabonete, o lixo deixa que eu tiro, se precisar de um travesseiro me avisa. Educadíssimo, Thomaz era um hóspede quase perfeito, não fosse o diabo daquele saco de marinheiro, que um dia largou aberto na sala enquanto tomava banho, o revólver 38 à mostra sobre a pilha de roupas.

Uma noite, depois de uma sessão de escalas e legattos ao violão, a distância entre nós diminuiu; da minha parte, após o consumo de um cigarro artesanal de excelente qualidade; por parte dele, o desejo de entender quem era o cabeludo com quem partilhava o cafofo. Conversamos sobre arte, cinema, música, ele contou algumas experiências vividas na extinta União Soviética. Relembrou seus tempos de estudante na Universidade em Moscou; eu contei que queria ser músico profissional, um compositor. Ele sorria, tinha os olhos alegres. Apesar do gelo quebrado, eu mantinha o cuidado: naqueles tempos a diferença entre não-saber e ter que engolir podia ser muito, muito dolorosa.

Numa noite de sábado, uma gloriosa noite de sábado em Ipanema, nenhum dos dois agüentava mais ficar em casa. Não sei de quem partiu a ideia, mas quando deu oito horas da noite saímos para jantar. Eu, com aquelas calça e jaqueta jeans quase furados, uma beleza de cabeleira balançando ao vento, sem lenço nem documento. Ele, impecável em um conjunto de tons escuros, o cabelo penteado e contido com esmero, será que portava seu 38? Caminhávamos lado a lado, duas gerações que se esbarravam em um determinado cotovelo do tempo histórico. Devíamos fazer um conjunto exótico para que nos visse, um Quixote e um Sancho Pança sem um Cervantes para eternizá-los. Pior, certamente com um meganha já vigiando nossos passos.

Jantamos ou apenas comemos sanduíches? Já não me lembro. Em seguida, pegamos a sessão das dez do falecido Cine Pax. Tampouco me recordo do filme. Mas me lembro muito bem do nosso caminho de volta até o apartamento da Nascimento Silva, a conversa descontraída. A noite, espantosamente calma e agradável, era o momento de sossego antecedendo a tempestade que em breve se abateria sobre ele. Os dois últimos dias que passamos juntos foram mais efêmeros do que costumam ser os dias, apenas vivemos sem pressa aquele clima de distensão dentro do cafofo ipanemenho, na contramão do que acontecia nas ruas, no país. Certa manhã saí para fazer um frila; na volta, Thomaz não estava. Ele e seu saco de marinheiro tinham seguido para a última escala.

Para escrever este texto e situá-lo, consultei, alem da minha memória, blogs e sites ligados ao tema como o Tortura Nunca Mais, além de meu compadre João Santana. Li notícias da família de Thomaz, a angústia de sua viúva, Miriam, de seus filhos, Larissa e Togo, de seus amigos (vou citar dois, mas são muitos, José Ribamar Bessa Freire e Carlos Vereza), por jamais terem notícia de seu corpo após sua prisão e assassinato em 7 de maio de 1974. Certamente não serve de consolo, mas aquela temporada ipanemenha foi talvez o último desfrute do guerrilheiro encurralado que jamais perdeu a elegância. Por sorte ou por azar, vá se saber, eu estava lá. E por isso (e muito mais) junto minha voz a deles: cadê Thomazinho?
 

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